Recifavela: Uma história inspiradora de reciclagem e cooperação

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A Recifavela começou há 11 anos e atualmente conta com 41 cooperados. Assim como na maioria das cooperativas, deste número, 80% são mulheres.

Vamos contar um pouco da Recifavela, cooperativa situada na Vila Prudente, bairro de São Paulo, através da Lilian Araújo, do Cristiano  Cardoso, da Josimeire do Nascimento e da Cibele Conceição. Formando assim recortes de um contexto periférico em que se encontram as cooperativas no Brasil.

A Recifavela começou há 11 anos, junto com Lilian e Cristiano. Atualmente contam com 41 cooperados – assim como na maioria das cooperativas, deste número, 80% são mulheres.

Como vocês se envolveram com a reciclagem?

Lilian: “Entrei na reciclagem através de um grupo de jovens que tinha na favela, quando surgiu a necessidade do primeiro emprego. Os catadores estavam sofrendo ordem de despejo debaixo do viaduto e o padre que coordenava o grupo perguntou: ‘por que não fazer a junção das duas coisas?’. Foi aí que entramos nisso, com o ‘barco andando’, não entendíamos nada de reciclagem. Jogaram a proposta e a gente aceitou.”

Josimeire: “Estou na cooperativa há dois anos, mas quando teve esse início, eu estava lá também. Eu peguei uma parte só, a parte de ficar na triagem e tudo mais. E por questões familiares eu precisei sair. Aí ficou o Cristiano e a Lilian, eles pegaram a parte mais precária, porque a cooperativa ficava debaixo do viaduto e não tinha local de fazer as necessidades, não tinha lugar de beber água potável. A cooperativa sofreu muita enchente. Então, aos trancos e barrancos mesmo, foram os dois [Cristiano e Josimeire] que acompanharam desde o início até aqui. E aí depois de um tempo, eu voltei para a cooperativa e ela estava toda estruturada, né? Atualmente fico na parte administrativa.”

Cibele: “Estou na cooperativa há 9 meses a convite do Cristiano e da Lilian. A gente se conheceu em um curso de administração. Ele me convidou assim que acabou meu contrato, falei que estava sem trabalho, ele foi e me chamou. Falei que iria fechar com eles desde aquele momento. Desde quando entrei, estou crescendo cada vez mais ali, eu digo para ele [Cristiano] direto que é uma universidade, pelo menos para mim. Aprendo todos os dias. Fico muito lá fora ajudando o pessoal a fazer a triagem, gosto bastante de pesquisar sobre os tipos de materiais. É um mundo muito novo para mim e estou gostando muito de estar lá dentro. Faço a parte do controle de produção, desde a triagem até o controle dos materiais.”

Cristiano: “Bem, eu entrei no Recifavela quando fundamos. Sempre fui autônomo, já tinha um pouco de noção do que era ter um negócio na mão. Aí em 2005 a gente foi para a Alemanha. Foram 10 jovens do grupo da igreja. Fui com a intenção de ficar lá, achando que era fácil. Falei que queria ficar para o padre, ele me perguntou se eu gostaria de ser mais um que vai sair do seu país ao invés de fazer alguma coisa para melhorá-lo. Na Alemanha é ótimo, mas você é um estrangeiro, simplesmente isso. Isso mexeu comigo. Acabei voltando, fiz um ano de formação de liderança. Articulei junto com um grupo de jovens formando um jornalzinho, fizemos o curso da PUC de economia solidária, gostei das pautas abordadas, propus ao grupo de fazermos uma cooperativa, levei até o padre e ele disse que era viável. Foi aí que começou.”

Qual a importância e o significado da reciclagem para vocês?

Josimeire: “Eu trabalhava em uma empresa e abandonei tudo para ir para uma cooperativa. É um processo diferente, é um equilíbrio diferente. Numa empresa você fica totalmente à mercê de um chefe. Agora é um ambiente de estar onde a gente gosta, chego de manhã e o dia passa muito rápido. A gente tem satisfação de estar lá dentro, porque a gente se realiza e também vê os cooperados se realizando. Então tudo que é feito na cooperativa não é só pra gente ficar lá no escritório, é também para todos que fazem parte da cooperativa, é a realização de praticar isso, de cada dia mais ver os projetos se realizando. Trabalhar com propósito é diferente, tem algo que você está buscando. O Cristiano até fala pra gente direto: ‘quero ver vocês realizando seus sonhos aí dentro, a cooperativa é uma fábrica de sonhos’.”

Cibele: “Realização. Acho que é a base do que a Josi falou, você entra lá dentro e quando vê já é 17h e você nem percebe. E também de final de semana: espera chegar o final de semana e quando chega, penso nas coisas que ainda quero fazer lá dentro [da cooperativa]. Tem até cooperados que, quando você falta um dia ou atrasa, falam: senti falta de você hoje. É uma convivência muito enriquecedora.”

Lilian: “A gente acaba aprendendo a ser uma família, porque passamos mais tempo com os cooperados. A Josi já falou tudo, não é um sonho só meu, é dos cooperados também.”

Cristiano: “A cooperativa é a minha vida. A coleta seletiva é o que a gente é hoje, se eu estivesse trabalhando em qualquer outra coisa não seria o que sou hoje. Falo não em questão de dinheiro, mas de pessoa mesmo, ver o mundo de outra maneira. Entender que o morador de rua está ali não é nem porque ele quer, entender um favelado, um refugiado, isso aí te muda diariamente. Acho que é um pouco disso, acreditar que uma pessoa está ali dentro e pode ser a única oportunidade da vida dela. A pessoa sai da cadeia depois de 28 anos preso, sai dali com um currículo imenso nas costas, bate na porta de uma empresa e nunca consegue a vaga. E ali (na cooperativa) é a vaga da vida dela para mostrar que é possível ela não voltar para o crime de novo. E aí você tem uma travesti que tá ali dentro trabalhando e ela tem um possibilidade de não voltar para a rua. E tem um favelado que tá ali com todas as possibilidades de ser a pior pessoa do mundo, como a mídia diz e a população talvez acredite, e lá ela está disponível a ser qualquer pessoa, pode ser o presidente, tesoureiro, contábil, pode ser qualquer coisa. Isso para nós, que estamos na frente da cooperativa, é uma coisa fantástica.”

Como ficou a relação de vocês com os próprios resíduos gerados no dia a dia?

Cristiano: “Eu sou completamente chato, meus filhos são catadores desde pequenos. Agora sobre a questão do canudo, por exemplo, tem uma empresa que vai fazer a troca do canudo, mas deixa o copo que não é reciclado. Eu paro lá e questiono: esse copo não é reciclável não, sabia? E mesmo colocando um biodegradável, você vai ter uma coleta seletiva? Aí as pessoas perguntam como podem ter mais informações, no site da Recifavela a gente coloca informações sobre isso. Ontem compramos um sorvete, na hora eu acreditava que aquele saquinho era BOPP (um tipo de plástico reciclável), quando peguei era plástico de classificação E7, ou seja, aquilo é lixo, não se recicla. Você começa a perceber que poderia ser um produto que poderia gerar renda, um impacto social, ambiental e econômico na vida de alguém, mas não, vai virar lixo.”

Lilian: “Não deixar ninguém jogar lixo no chão. Lá em casa a gente faz a separação também.”

Cibele: “Antigamente eu colocava todo o lixo misturado, hoje em dia já faço a separação para facilitar, orgânico e reciclável. E também tinha essa mania de jogar no chão, mas agora parei, deixo no bolso, na bolsa.”

Josimeire: “Lá em casa é meio trabalhoso isso, moro com 7 pessoas. São pessoas que não entendem muito, então tento conversar com eles sobre pelo menos não colocar o alimento no reciclável, porque lá na cooperativa a gente separa. Começa a ser automático contar sobre a cooperativa e o nosso sentimento, lá é um aprendizado, cada dia a gente aprende coisas novas. Então coisas que a gente não aprende nem na escola lá a gente acaba aprendendo.”

Considerando que 80% dos cooperados são mulheres, existem ações de empoderamento feminino na Recifavela?

Josimeire: “Lá na cooperativa temos um projeto com estudantes de psicologia da Uninove. De seis em seis meses eles trabalham um tema. Já trabalharam o empoderamento da mulher. Era sobre como a mulher/cooperada via o seu papel dentro da cooperativa ao se tratar do assédio dos homens, de homens querendo mandar nelas, machismo tanto ali, quanto em casa. E fizeram esse trabalho com a gente durante 6 meses. E assim, as pessoas são muito fechadas para falar sobre essa questão com os psicólogos.”

Cristiano: “Temos várias câmeras na cooperativa. A gente trabalha muito com homem. Homem já é machista por natureza, homens que já passaram pela cadeia, então, nem se fala. Foi aí que a gente percebeu alguns casos de assédio através das gravações. Essas coisas não podem acontecer, e as mulheres não achavam que estavam sofrendo assédio. Achavam que era brincadeira, que era elogio. Aí com a Uninove a gente começou um trabalho muito sério com os homens, de respeito às mulheres e um trabalho com as mulheres de empoderamento para elas perceberem o que é violência.”

Na sua opinião, qual é o maior desafio dos agentes de reciclagem?

Cristiano: “Hoje a cooperativa fica à mercê de um simples fator: resíduo. E quem é o dono do resíduo é o município e indiretamente a concessionária. Se a concessionária falar que não há resíduos, não tem resíduos nas cooperativas e as cooperativas ficam a mercê disso. Não há uma distribuição correta na cidade. Então seguimos outros caminhos, olhamos para nossa região, para os condomínios e percebemos um volume imenso de resíduos não coletados. É muito difícil para uma cooperativa conseguir sobreviver. Hoje a cooperativa só pode ter 100 toneladas de resíduos da prefeitura: 20% é rejeito, mais outros tipos de materiais que até o momento não são recicláveis. Aí você tem uma margem muito pequena de venda. ‘Ah, eu quero mais resíduos’, mas a cidade não tem como mandar mais. ‘Tá faltando resíduos’, como tá faltando resíduos? O problema não é falta de resíduo, é não querer que as cooperativas saiam do processo em que hoje se encontram, dependentes deles. Hoje nosso maior desafio é mostrar para prefeitura que nós temos capacidade.”

No que a Política Nacional de Resíduos Sólidos mudou de efetivo na base da cadeia?

Cristiano: “A Política Nacional de Resíduos Sólidos é uma política muito boa, o problema é a questão de como as empresas entendem o que ela traz de benefício no âmbito nacional. Tem a questão das notas fiscais: as outras cooperativas nem sabem como emitir a nota fiscal e a importância dela para formalização. Aí deixam a responsabilidade para a cooperativa. Isso é muito complicado. Ou a gente entende o programa com uma causa social e vê que tem alguém fazendo esse trabalho e que tem que dar retorno de qualidade para quem está fazendo, ou não vai adiantar nada.
E tem uma crítica para nossa categoria mesmo: é deixar tudo acontecer em cima da hora. Política está na nossa raiz, nós somos parte de uma causa política. É deixar toda essa questão à mercê da prefeitura, sem nos posicionarmos. Isso é um problema.”

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